quinta-feira, 21 de julho de 2005

Lembranças estudantis - Regina Igel

Esta crônica foi escrita pela minha querida amiga Regina Igel. Eu gostei muito, assim como gosto de muitas outras de suas crônicas, pedi para publicá-la aqui e ela concordou.

Lembranças estudantis

Geralmente, não gosto, não curto e não me inclino a reaparecer no meu próprio passado. Seja por falta de tempo, seja por uma autocrítica severa, me acostumei a rechaçar lembranças do passado. Simplesmente não vejo nada interessante em ficar lembrando o que passou. É uma questão pessoal - talvez por sofrer saudades, talvez por saber que as coisas boas não voltarão, ou talvez, ainda, por ter certeza de que as coisas erradas não poderão ser consertadas... Não sei. Enfim, ao contrário de todas as minhas travas internas, hoje a coisa está acontecendo. Estou lembrando de muitas coisas passadas. Principalmente as mais "recentes" - entre aspas, porque isto de "recente" é subjetivo. São coisas que vivi nos tempos em que era estudante, longe de casa, num país diferente e envolvida por um sistema educacional também diferente.Enfim, a lembrança - ou mais de uma - que me ocorreu é de um jantar. Fui convidada por um rapaz, estudante de alguma matéria da qual não me lembro mesmo. Ele era europeu, interessado em coisas brasileiras e, como conseqüência, interessado em informações que só eu - na ocasião - poderia lhe dar. Disse tudo isto ao telefone, ao me convidar. E pediu, de uma maneira mais sutil possível para ele, que eu trouxesse o meu já famoso pudim de leite condensado - com um ingrediente secreto, só meu, que o fazia diferente de todos os pudins sul-americanos. .... Levei o pudim. Cheguei lá no apartamento dele. Os convidados todos já espalhados pela minúscula saleta. Contei. Onze rapazes. E eu. E meu pudim nas mãos. Aplaudiram minha entrada, ou a entrada do pudim. Na ocasião, acho, não pensei que fosse estranho eu estar sozinha em companhia de onze rapazes. Todos europeus, os amigos do meu amigo. Fizeram-me mil e tantas perguntas sobre o Brasil - que estava sob o regime militar. E no meio de toda aquela roda-viva de perguntas e respostas, um deles me perguntou onde eu tinha aprendido a receita de pudim. Respondi:-- Com a empregada de casa.E logo se instalou um diálogo, do qual me recordo algumas partes. Um dos rapazes era um estudante afiliado a movimentos esquerdistas na Europa. Na verdade, os rumores informavam que ele estava foragido da polícia do seu país, e que um tio importante lhe havia arrumado uma bolsa de estudos. Ali estava ele, fulminado com minha observação.-- Empregada? Sua família tem empregada no Brasil?Na minha ignorância política e social de então, respondi:-- Sim, é comum ter empregada doméstica no Brasil.Se eu tivesse dito que é comum para "certas" famílias da "classe média" brasileira ter empregadas domésticas, acho que teria evitado a pergunta que ele me fez a seguir. Mas, então, não teria aprendido a ver as coisas de outro ângulo. Esta foi a pergunta dele:-- E a sua empregada, também tem uma empregada, já que é assim comum?Fiquei estatelada com a observação dele. Realmente, minha perspectiva das coisas, naquele então, era bem estreita. (Espero ter melhorado, mas quem sabe...) Eu sabia, claro, que havia uma grande diferença em termos sociais e outros mais, entre as famílias da classe média e as pessoas que as serviam como "empregadas domésticas". Mas não ia além disto minha visão da sociedade. Também sabia, pelas conversas daquelas, que a vida delas era quase totalmente destituída das oportunidades de estudos e outros avanços, que a minha camada social me permitia. Nem mesmo os colégios estaduais facilitavam a entrada de crianças abaixo da linha "classe média baixa" - pois exigiam conhecimentos que quase só escolas particulares poderiam oferecer. Era um círculo infernal de proibições sociais - cujos resultados, lamentavelmente, estamos vivendo - ou morrendo - hoje. Enfim, voltando à reunião com os onze europeus. - Depois daquela pergunta, que ficou sem resposta, ou até acho que balbuciei qualquer coisa, minha visão da vida mudou, se transformou, adquiriu uma outra direção. Não me tornei socialista nem comunista nem coisalista nenhuma, mas o que aquele jovem socialista me ensinou, com sua simples pergunta, comigo ficou. Até hoje, quando estou saboreando este pudim - com seu ingrediente secreto... - me vem à lembrança aquela pergunta. Depois que terminamos os estudos, não mais vi ninguém deles, embora muito gostasse de saber do dono do jantar e daquele amigo dele que me fez a pergunta. Lembro-me que o nome do dono da casa começava com a letra K e que ele se tornou um diplomata de seu país. Soube também que chegou a servir em Brasília - posso imaginar o contentamento dele, afinal, ele tinha tanta curiosidade por nossa terra. - A respeito do outro, o socialista perguntador, soube que ele se formou em Medicina. Não me lembro sequer como se chamava. Mas sua pergunta ficou. Não dá pra esquecer. E isto é bom. Tão bom como saborear o pudim, cujo ingrediente secreto me foi passado por aquela humilde pessoa, nossa empregada que, com certeza, não tinha nenhuma empregada para servi-la.
---(c)

Regina Igel.
Formada em Letras Neolatinas pela USP. Mestrado em Literaturas Hispano-americanas e Doutorado em Literaturas em língua portuguesa.

segunda-feira, 11 de julho de 2005

Bélgica

[Escrevi, há muitos séculos, um trabalho sobre a comunidade brasileira na Bélgica para um jornal brasileiro que era publicado em Londres e distribuído pelas capitais da Europa, voltado, evidentemente, só para a comunidade brasileira e em português. Quase nenhum desses jornais conseguia sobreviver muito tempo nessa época, esse até que foi longe, mas deve ter dado o último suspiro em 99. Aqui não coloco o artigo, porque é realmente muito chato, retirei só algumas poucas informações gerais sobre a Bélgica.... Remexendo no baú por falta de tempo de escrever.]


A Bélgica é um dos menores países da Europa com uma extensão territorial de 30.518 km², faz fronteira com a França, a Holanda, a Alemanha, Luxemburgo e o Mar do Norte. O fato de ser pequeno não impede, porém, que este país seja sacudido por graves questões de ordem linguística e cultural. Há três línguas oficiais na Bélgica, o francês, o neerlandês (holandês) e o alemão. Dos dez milhões de habitantes deste país, 66% se expressam em neerlandês, 31% em francês e 3% em alemão. A guerra linguística é entre neerlandófonos e francófonos e isso dificulta em muito a vida do cidadão belga, por exemplo o exercício de quase todas as profissões exige o conhecimento das duas línguas, quando não três pois conhecimentos de inglês são muito bem vindos. Em Bruxelas não é raro ouvir um mendigo pedir esmolas em francês e em seguida repetir a ladainha em neerlandês.

sábado, 2 de julho de 2005

Fado

Se tem uma coisa que eu odeio são esses caras que ficam dando voltinhas inúteis para abrir a porta do carro pra gente. O meu pai era desses galantes, dava quantas voltas fosse preciso por causa de uma mulher, mas não pra minha mãe, isso não, era só até conquistar, um teatro, entende? Aliás, a coisa é toda um teatro mesmo, que mulher não consegue abrir e fechar a porta de um carro? Para a coitada da minha mãe, o que sobrava era um lado nada poético. Também não quero dizer que era em poesia que as outras estavam interessadas, sabe? Poesia? Eu, quando estou de bode, só vou soltando besteiras, nem preste atenção. O velho estava longe, muito longe de ter qualquer coisa que beirasse o lírico. Em dinheiro não podia ser que as patetas estivessem interessadas, a não ser que ele mentisse muito bem, não tinha onde cair morto. Devia mentir, tem gente que acredita em qualquer lenga-lenga. Uma coisa eu ouvi dizer, que ele era muito bonito. Quando falo em patetas, incluo aí a minha mãe. A mais pateta das patetas, na verdade.

Diz a tal Carmem que l’amour est un oiseau rebelle, e deve ser mesmo, uma puta duma rebeldia pra deixar uma mulher assim cega. Era amor mesmo o que mamãe sentia? Quatorze vezes ele a deixou grávida, quatorze não, dezesseis vezes. Dezesseis sim, tem sentido? Dois morreram, já nem sei como. Sete? Sete filhos tanta gente tem, não é mesmo? Sete homens e sete mulheres foi o que eles fabricaram. Parece conta feita. Então era assim, o bonitão desaparecia por uns tempos, vinha e bimba, um filho, sumia por mais um tempo, voltava e a mãe lá firme, com o barrigão firme. Lá vinha mais um pra viver a pobreza escolhida pela minha mãe. Foi por conta desse amor aí, desse ‘oiseau rebelle?’

Um dia a professora mandou a gente ler um tal de Éramos seis e veio perguntar, justo pra mim, “Marina, o que foi que você achou do livro?” “Não achei nada, professora.” Respondi. “Como assim, nada? Você leu o livro?” “Eu li, professora, mas não vi graça na choradeira porque, se a senhora quiser saber, lá em casa somos Quatorze.” Pra bom entendedor um pingo é letra, ela não me encheu mais o saco, viu que precisa mais do que seis pra me impressionar….Amor, amor! Eu tô por aqui com amor, sabe? Nem me deixo levar por esse fátuo fado que engabelou a minha mãe. Então, quando um cara vem abrir a porta do carro pra mim eu já fico de butuca, já sei que ali tem. Podem pensar que estão me enganando, não estão….estão se enganando. Eu sei onde piso e piso com jeito. Fiquei esperta só de observar os trejeitos do velho em casa. Assim, podem abrir porta a vontade - já sei que hoje os homens não saem mais por aí abrindo porta de carro, que isso é da época do meu pai, entenda como metáfora, está bem?- Não adianta abrir portas, não adianta flores….Falando em flores, o safado nunca viu tantas, está lá no salão, agora, coberto delas. Com licença que eu também vou dar o meu adeus. Adeus que eu gostaria de ter dado há muito tempo.

Leila Silva

Publicado em Anjos de Prata